Segurança.
Esse sempre foi o lema em que minha vida embalava-se; quando criança minha mãe
não era capaz de deixar-me, nem ao menos, descer de um escorregador sem a
companhia dela. Lembro de uma vez em que fugi, com seis anos, para ir ao parquinho
sozinha. Andar no balanço embalando-o com minha própria força, sentindo o vento
em meu rosto... Foi a vez em que me senti mais livre para fazer o que realmente
queria. Foi uma sensação que nunca mais consegui encontrar em minha vida.
Até agora.
Lembranças
podem ser como um filme. Reviver o passado há qualquer momento é uma emoção sem
definição concreta, mas também abstrata. Estar aqui, nessa sala, sequestrada e
sozinha parece ser tão infantil, sem sentido, não real, e isso que está
aguçando minha mente. Sinto cheiro de sangue. Pergunto-me quantas pessoas já
perderam sua existência nessa sala; digo existência, pois não acredito que uma
lâmina ou nenhuma outra arma física seja capaz de tirar a vida de alguém. Vida
é uma definição muito mais complexa do que o ser humano pensa. Está no ar, na
poeira... O cheiro desse quarto faz com que eu recorde minha infância. Da vez
em que abri a porta do banheiro e encontrei os azulejos manchados, era tudo
geralmente tão branco, mas aquela vez era vermelho. Muito vermelho. Um lago em
vinho formava-se no chão. Gritei, o mais alto que podia, gritei muitas vezes.
Creio ter salvo minha mãe. Lembro de tantas coisas ruins, mas, geralmente, as
boas falam mais alto. E agora eu estou nesse cativeiro, prestes a morrer, pelos
olhos mais profundos, os olhos que fazem eu ansiar pelo novo, por descobrir o
mistério. Fazia tanto tempo que ele havia saído, e eu nem mesmo havia tentado
abrir a porta. Aberta! Não há ninguém por perto. Caminhei até meu carro, a
noite escura, as chaves na ignição! Eu estava viva. E o assassino mais
calculista, a mente mais atraente para se decifrar, deixou que eu vivesse. Por
quê? Sou mulher. Bem sucedida. Solteira. Encaixo-me nos perfis das vítimas.
Porque eu não? Estudei o caso detalhadamente. Era a única coisa que fazia bem.
Meu trabalho; jornalista investigativa. Entrei no carro e dirigi. Lembranças da
faculdade surgiram.
-Anne
Proenza. ANNE PROENZA!
Sempre era
chamada duas vezes.
-Presente.
Após
responder a chamada, voltava ao meu mundo. Imaginando histórias, me perdendo em
mundos imaginários. Geralmente as coisas pareciam tão desnecessárias. O curso
de jornalismo era, na maior parte do tempo, onde eu mais me encaixava. Ter
perdido minha mãe no ano em que entrei para a faculdade fez com que me fechasse
mais ainda para o mundo. Ter um pai agressivo que, além de agredir minha mãe,
ficava feliz com meu isolamento do mundo não era a coisa mais agradável. Morei
com ele até formar-me. Na maior parte do tempo ficava no meu quarto. Minha tia
morava em frente ao nosso apartamento. Os jantares e almoços sempre aconteciam
na casa dela. A mudança para tão perto havia ocorrido para diminuir a opressão
do meu pai sobre minha mãe. Os últimos três anos dela foram os mais calmos,
mesmo que lutando contra a leucemia. A passagem pela faculdade foi muito
rápida. Meu tio trabalhava no jornal local e conseguiu uma vaga na área
criminal da redação. Eu mantinha contato com a polícia e atualizava a parte
investigativa. Mas com o tempo fui me envolvendo mais e mais com a parte da
investigação. Chegava a trabalhar mais com a polícia do que com a redação. Tudo
ia tão normal. Eram crimes entediantes, como o “Ladrão de Pão”, um assaltante
de padarias. Mas algo diferente surgiu. Um assassino que deixava um bilhete com
seu nome sobre o corpo nu das vítimas. Apenas “Lênin Arpini” escrito com uma
letra suave, como se fosse escrita com pena e tinta. Foram seis assassinatos.
Analisei cada vítima, cada caso, cada rastro, cada pista. Surgiu uma obsessão.
Não conseguia fugir do caos da ideia de como seria ser uma vítima. Como seria
estar sobre o controle de outra pessoa. Como seria ir contra tudo e todos. Tudo
sempre foi errado e imprudente em minha vida. A vida do “serial killer”
apaixonante tornou-se um livro aberto para mim. E era inegável que eu estava
alucinada, não sei se essa é a palavra certa, por ele. Passei dias nessa
conturbada relação platônica. Tudo em segredo, afinal não havia ninguém para
compartilhar meu conto de fadas bizarro. Em um ato de coragem, ou burrice,
persegui Lênin. Estava certa de que seria uma vítima. Ao mesmo tempo que tinha
medo, sentia-me excitada. Fui agarrada por ele, machucada, levada para o
cativeiro, e eu ria tanto. Estava feliz. Era algo que havia escolhido
secretamente. O olhar que ele trocou comigo foi de medo. E aqui estou de volta
ao presente. Dirigindo. Fracassei; não fui capaz de atender ao desejo de uma
mente brilhante. A confusão espalha-se por minha mente e pele. Cansei de tudo,
de todos. A vida merece emoção.
A água da
banheira está morna. Sinto a navalha abrindo meus pulsos e a água começa a
ficar mais quente. Dizem que quando se está prestes a morrer a vida passa toda
por seus olhos, e é verdade...
Primeiro a
menina dos cabelos negros que passava as manhãs em casa, assistindo programas
entediantes para disfarçar as brigas dos pais. Encantado era uma cidade bonita,
mas que nunca pode ser desfrutada por ela. Aos quinze anos os fones de ouvido
eram seus companheiros, a música era seu refúgio. E ali ela perdia-se do mundo.
O medo do pai sempre a oprimia de qualquer atitude mais ousada. Tudo parecia
ser tão calculado agora.
Estava tão
fraca. Tudo ia ficando mais claro, o branco ia tomando minha visão...
A garota,
que um dia havia sido eu, estava tão feliz. Era sua formatura de ensino médio,
mas não era esse o motivo de sua alegria. Sua mãe a observava orgulhosa, mesmo
que com um olhar cansado e fraco ela estava feliz por ver em sua filha a
esperança de ser o que ela não foi. E, agora, penso que tudo que fiz foi uma
desculpa para tomar em minha mente o desejo de assistir o filme entediante que
foi minha vida. Não houve paixão por assassino; nem por nada. Houve covardia e
medo.
O sabor de
ferro da água foi o último gole de uma vida. Agora, somente esperança e
mistério...